quinta-feira, 3 de abril de 2008

Fernando

Lentamente a noite deu lugar a uma madrugada encharcada em álcool e anfetaminas.
Caminhávamos ao sabor do vento pelas ruas húmidas da cidade. Um frio polar congelava o fumo dos cigarros em volta do rosto criando uma estranha composição enriquecida pelas luzes veladas dos tímidos candeeiros. O cansaço ainda era uma distante memória, mas os nossos corpos começavam a ganhar consciência da noite que ainda não tinha acabado.
Naqueles dias a vida era povoada de dúvidas. Mas eram dúvidas carregadas de doçura por permitirem ainda a esperança.
Só em casa dele quando já tínhamos comido e contávamos os cigarros que ainda nos restavam Fernando falou nela. As palavras dele não tinham amargura apenas uma leve resignação, que na altura me pareceu, sem eu perceber porquê, mais preocupante.
O travo forte e encorpado do Vinho que bebíamos turvava-me os sentidos e tudo me parecia incrivelmente distante como se eu observasse a realidade de fora, fazendo e ao mesmo tempo não fazendo parte dela. E o Fernando falava nela contava-me os pormenores mais íntimos do corpo dela, elogiava a voz, o toque e a inteligência.
Tudo que ele falava fez-me recordar a minha própria miséria e dei por mim a pensar que nunca tinha sido importante para ninguém. Seria sempre a roda suplementar, perfeitamente dispensável, de um mecanismo que apenas dependia de mim quando alguma parte desse sistema falhasse, durante o período de tempo necessário a manter em funcionamento o mecanismo.

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